Pular para o conteúdo

Submersa

Por Kimberly Ivy*

Publicado no blog Embrace the Moon, em 31 de agosto, 2016

 

 

Sinto o Grão-mestre Chen Xiaoxing se aproximar atrás de mim. O jogo já começou. O resultado já está pré-determinado e mesmo assim eu jogo, por minha vontade. Nos momentos breves entre o início da sessão e o momento em que sinto as mãos do Grão-mestre puxarem meu quadril para trás, procuro colocar meu corpo de modo a deixá-lo satisfeito, em uma posição que mostre que consegui entender tantos anos de aulas. Uma posição que ele aprove, para que ele não precise afundar meu quadril para trás, ajeitar meu peito e endireitar minha cabeça. Eu jogo esse jogo aula após aula, ano após ano e ainda as correções vêm, vem a queimação, vem o suor. Claro que esse é um jogo que eu não acho que possa realmente ganhar algum dia, nem é isso que eu quero. Uma das minhas razões para estudar sob a orientação desse professor é a habilidade que ele tem, mas a mais importante é que ele sempre me faz ir mais além na minha própria habilidade. E sempre há uma, muitas, infinitas correções a serem feitas. Sempre. Essa é a arte do Taijiquan, assim é meu professor.

Então, na verdade, o desafio é ver por quanto tempo eu consigo manter isso que ele me dá de presente. Por quanto tempo consigo convencer meu corpo a sentir o que sente depois que ele me corrige? Por quanto tempo consigo ficar parada com o quadril flexionado, joelhos flexionados, peso para trás, deixando que a gravidade me traga para baixo, saturando meus músculos até um ponto onde eu jamais iria. Por quanto tempo o suor pode escorrer pelo meu rosto e pescoço sem que eu precise me enxugar, por quanto tempo minhas pernas aguentam ficar na frigideira sem saltar como gafanhotos? Como alunos, podemos chegar ao ponto de tentar sermos mais espertos que o professor, fazendo apostas calculadas no grau preciso de dor que podemos suportar para conservar um restinho de conforto. Realmente faz sentido, é o mecanismo humano de sobrevivência que está ali, algo profundo demais para nos deixar chegar livremente até esse ponto em que parece que vamos morrer. E mesmo assim, aprender com esse professor é exatamente isso para mim. Por quanto tempo consigo ficar submersa, debaixo d’água sem que meu corpo diga que preciso subir para respirar?

Quando as sensações ameaçam vencer a minha firme determinação, tenho minhas estratégias. Conto minhas respirações. Me imagino nos degraus de casa, o ar fresco de Seattle à minha volta, uma das minhas canções favoritas aliviando o meu cérebro. Mas todas essas são medidas temporárias e na verdade inúteis, distrações que me desviam da tarefa de simplesmente permanecer ali, debaixo d’água, acreditando que não vou morrer. Não há outra maneira de acumular memória corporal e habilidade, apenas essa. Buscar outras formas de aprender – através de livros ou vídeos ou métodos menos rigorosos fisicamente – se não for completa perda de tempo, seria tempo gasto de modo menos efetivo. Para aprender Taijiquan é preciso simplesmente colocar-se no seu próprio corpo.

Eu sempre sei o que ele vai procurar. Sempre o mesmo equívoco estrutural e os mesmos padrões de tensão, sessão após sessão, ano após ano. Eu sei que muitos desses padrões não são pessoais. São padrões de tensão humanos, padrões de tensão de um estilo de vida, padrões aprendidos de outras artes do movimento, ou desvios de nascença e outros desenvolvidos por lesões ou enfermidades. Mas alguns deles são pessoais: um grupo muscular amarrado sem nenhum motivo aparente, uma inclinação da cabeça, um queixo protuberante. Na verdade, há alguns dias percebi que fico lutando com afinco para manter meus padrões de tensão no lugar. Com certeza sou forte o suficiente para deixá-los ir embora, sou resiliente o bastante para enfrentar a variedade de sensações que aparecem quando estou “naquela” posição. Na verdade, todo mundo que me conhece sabe que eu amo esse processo, que sou ávida e grata por ele. E então, por quê, me perguntei outro dia, estou lutando tanto para manter essa tensão aqui? É como se algo em mim acreditasse que vou morrer se deixar que ela vá embora.

Uma das orientações no Taijiquan é chén (沉). Linda fez um pouco de pesquisa sobre esse termo e, usado neste contexto, significa “submergir”, “imergir”, “afundar”. Esse termo é muito usado nas instruções do Taijiquan para indicar um processo que deve ser buscado entre um componente e outro de cada movimento, antes de passar ao próximo. Antes de realmente transferir nosso centro de gravidade, devemos chén: afundar, submergir. Em outra camada de significado, esse ideograma também pode querer dizer “afundar os pensamentos”. Uma revelação fascinante! Talvez então, quando estou – quando estamos – lutando arduamente para conservar uma tensão, estamos na verdade lutando para nos agarrar a um pensamento, uma certeza a respeito de quem pensamos que somos. E se… E se submergindo esses pensamentos, essas certezas, até o fundo da nascente do Taijiquan, pudéssemos encontrar um lugar de calma, de desprendimento, de alívio? Esses padrões de tensão que lutamos tanto para conservar nos moldam de maneiras que não nos deixam respirar e nos amarram, além de nos manter longe de um lugar mais fértil, que todas as pessoas podem acessar. Um grande professor nos leva justamente para dentro de nós mesmos, ali onde a lição não é suportar, mas deixar ir embora.

Tivemos um grande dia ontem: um treino rigoroso pela manhã e uma tarde explorando o parque e o Museu do Taijiquan. Estava quente demais para mim e, depois de tirar fotos e passear um pouco, me permiti ficar de fora, tendo já visitado o lugar muitas vezes. Enquanto voltava para o descanso e o ar condicionado, fiquei feliz por muitos terem ficado lá tirando fotos e criando memórias. Tivemos um jantar fantástico em Wenxian na noite passada, com outro grupo americano que está aqui por uma semana com seu professor, passeando e estudando. Novas pessoas chegam a cada dia para estudar com nosso grupo. Acho que o Grão-mestre tem uma espécie de campo gravitacional; quando as pessoas ficam sabendo que ele está dando uma aula estruturada, elas aparecem. Nina disse: “Ele é o xamã”. Sim, ele é o Xamã, o Místico, o professor da aldeia. “Ele é o melhor da China”, disse uma das minhas novas amigas chinesas, irmã de um discípulo do Grão-mestre Chen Xiaoxing. “Depois de encontrá-lo ontem tive que mudar meus planos para poder voltar a Chenjiagou e estudar com ele”. Nosso grupo ainda é pequeno, cerca de 20 pessoas, e houve um caminho a percorrer para vir estudar com ele, temos muita sorte. O sol está brilhando, os cachorros latindo. O sexto dia já vai começar. Por aqui o tempo passa rápido.

“Permita-se adentrar o Mistério, desprenda-se. Não há outro lugar para estar, disso eu sei. Você tem que dançar e cantar e estar vivo no Mistério, ser alegre e agradecer e desprender-se” – Van Morrisson

 

*Kim Ivy tem mais de 60 anos e começou sua jornada pelas artes marciais internas aos 20.
É discípula do Grão-mestre Chen Xiao Wang e fundadora da escola Embrace the Moon, braço da Chenjiagou Taijiquan Xuexiao em Seattle, E.U.A.
.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *