O tempo da prática: entre o pedido de desculpas e o compromisso com o caminho
por Laoshi Gil Rodrigues
O Taijiquan (Tai Chi Chuan) não é uma prática qualquer. Não é ginástica, não é técnica decorada. É arte viva. E, como toda arte, exige de quem a cultiva: presença, constância e escuta. Uma arte não se oferece por inteiro àqueles que a tratam como entretenimento esporádico ou como válvula de escape eventual. Ela floresce no terreno firme da regularidade, no solo fértil do compromisso e no tempo consagrado.
Vivemos tempos que exigem produtividade. Produzir trabalho, produzir conteúdo, produzir resultados, produzir dinheiro. E nesse redemoinho, onde tudo parece urgente e tudo exige pressa, o tempo do cultivo se torna, muitas vezes, o tempo negado. No entanto, é precisamente nesse tempo utilitário que precisamos abrir fendas. Fazer nele um respiro. Criar um espaço onde o gesto lento, consciente e atento possa existir. Onde o corpo e o espírito se reencontrem.
É aqui que entra o paradoxo: é justamente nos dias de maior cansaço, desânimo ou desordem que mais precisamos da prática. Não como obrigação, mas como cuidado. Não como peso, mas como raiz.
“Desculpe, Laoshi, hoje eu não vou.”
Essa frase, tão comum quanto compreensível, carrega mais do que uma simples ausência.É um gesto simbólico que revela, por vezes, uma cisão entre o desejo de seguir no caminho e o peso da rotina que nos empurra para fora dele.
Há um dito popular que diz: “Quem quer faz, quem não quer arruma uma desculpa.”
Poderíamos rejeitar esse ditado como uma frase moralista ou simplista. Há também armadilha sutil nesse pensamento: ele individualiza o sentimento de fracasso, mas esquece que o comprometimento verdadeiro não nasce da força de vontade isolada. Ele brota de um vínculo. De uma ética partilhada. É por isso que a prática do Taijiquan se ancora em algo mais profundo: a construção de uma comunidade de prática.
Quando praticamos, não fazemos apenas por nós mesmos. Fazemos em ressonância com quem veio antes, com quem está ao nosso lado, com quem virá depois. Somos corpo presente numa linhagem, numa tradição, num círculo que pulsa — onde cada ausência não é só um vazio no espaço físico, mas também um silêncio no fluxo coletivo do qi.
Não se trata, portanto, de pedir desculpas ao professor. O Laoshi não é o centro. Ele apenas aponta a direção.
O compromisso, em sua essência, é com o próprio caminho. É com a arte. É com aquilo que o Taijiquan nos ensina a construir: firmeza e suavidade, enraizamento e leveza, intenção e presença.
Aqui cabe também desfazer um equívoco recorrente: a ideia de “reposição de aula”.
No cultivo do Taijiquan, essa lógica não se aplica da mesma forma que em disciplinas escolares. O desenvolvimento na arte é sim cumulativo — cada repetição aprofunda, cada gesto reaprendido refina a escuta.
Mas o tempo da prática não se armazena nem se compensa. O que foi perdido em presença, em respiração, em relação com o grupo e com o espaço, não se repõe.
Cada aula é uma travessia única. Cada momento é irrepetível. O gesto que não foi feito naquele instante, com aquele grupo, naquele campo de energia, simplesmente não existe mais.
Não se trata de perder conteúdo — trata-se de abrir mão do tempo de vida em arte, em presença, em corpo desperto.
Faltar é humano e assumir responsabilidade sobre o que se perdeu é parte da ética do praticante.
Mais importante do que justificar uma ausência, é fazer desse ausentar-se e do retorno um ato consciente. Ganhar consciência desses movimentos assim como esperamos ganhar consciência de cada movimento quando aprendemos e amadurecemos um taolu.
O tempo da prática não é sobra, não é luxo, não é lazer. Ele é fundamento. É nele que firmamos os pés na terra e estendemos as mãos ao céu. É nele que o gesto se transforma em caminho. E o caminho é a arte de viver.
Da próxima vez que pensar em dizer: “Hoje eu não vou”, pergunte-se:
Estou negando o meu corpo ou cuidando dele? Estou traindo o ritmo da arte ou escutando suas pausas?
Não peça desculpas. Apenas continue.
E, sobretudo, comprometa-se.
「一日不練,自己知道;二日不練,師父知道;三日不練,大家知道。」
“Um dia sem prática, só você percebe. Dois dias, seu mestre percebe. Três dias, todos percebem.”
— Provérbio tradicional chinês