Gil Rodrigues¹ e Julia Ruiz²
Em dezembro de 2020, tivemos a notícia da definitiva inclusão do taijiquan na lista representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, mantida pela UNESCO. A lista crescente, criada em 2005, tem como objetivo promover a proteção daqueles elementos da cultura e da memória dos povos que vão muito além de objetos que podem ser guardados pelos museus. Afirma que o maior patrimônio da humanidade são as manifestações culturais vivas, os saberes e as práticas que geram sentidos de comunidade e continuidade. Segundo a UNESCO, para que se reconheça um elemento cultural como patrimônio imaterial, é importante que se trate de algo que perdura no tempo, “transmitido de geração em geração e constantemente recriado pelas comunidades e grupos em resposta a seu ambiente, à sua interação com a natureza e a sua história”³.
O taijiquan, como era de se imaginar, atende esse critério, já que se trata de uma arte marcial tradicional criada no século XVII e praticada até hoje em seu lugar de origem (Chenjiagou, Henan, China) assim como ao redor do mundo. Mas qual é a importância, para nós, praticantes no Brasil, desse caráter tradicional da nossa arte? Em um lugar tão distante de Chenjiagou, com uma cultura tão diferente (também valiosa), enfrentando os desafios que nos são colocados por nossa própria história, porque deveríamos querer seguir uma linhagem tradicional, em vez de extrair do tai chi apenas aquilo que parece imediatamente mais útil e atraente?
Podemos tomar como exemplo a relação de discipulado. O vínculo entre mestre e discípulo, os modos de transmissão e os rituais que definem tradicionalmente essa relação, são considerados fundamentais nas artes marciais chinesas. Porque precisos ter um mestre, seguir uma linha técnica e didática, me limitar a treinar os taolus de um só estilo, se posso frequentar seminários internacionais, consultar arquivos abundantes em vídeo e beber de todas as fontes disponíveis on-line para desenvolver meu próprio trabalho e oferecer a meus alunos aquilo que aprendi?
A Escola Chenjiagou Brasil, braço da Chenjiagou Taijiquan Xuexiao, é fruto do velho caminho do discipulado. O diretor Gil Rodrigues, nascido no interior de Alagoas, tornou-se discípulo de Chen Ziqiang em 2015, ajoelhando-se diante dele em uma cerimônia conduzida pelos anciãos do vilarejo, no templo da Família Chen em Chenjiagou. Após a cerimônia diante da dúvida do discípulo sobre suas novas obrigações, o mestre resumiu: venha todo ano até a vila para treinar com sua família.
Um ano mais tarde, a escola brasileira é fundada com a primeira vinda do mestre, para oferecer seminários no Rio e em São Paulo. Nunca nos cansamos falar aos alunos sobre nosso mestre. Quando nos apresentam uma dúvida, o primeiro lugar onde buscamos respostas é nas falas e nas correções feitas por ele. Fazemos tudo que está ao nosso alcance para trazê-lo anualmente ao Brasil, com o objetivo principal de que nossos alunos tenham contato com o mestre, recebam suas instruções, correções e observem em primeira mão como seu corpo se move.
Mais de uma vez durante os seminários, o mestre lembra que não basta imitar a forma exterior sem esse trabalho reflexivo, sem essa atenção interna a cada gesto. Não devemos guardar na memória a imagem do movimento que ele executa, explica: os corpos são diferentes, as constituições ósseas são diferentes, por isso as linhas nunca serão iguais. O que devemos guardar do mestre são as sensações que o treino que ele conduziu provocou no nosso corpo: essas são iguais para todo mundo, diz ele, as pernas ardendo, o cansaço. Demonstra suas correções nos corpos dos colegas e do seu discípulo: o outro, como nós, treme. Os troncos de diferentes tamanhos, formas e idades se inclinam para frente quando as pernas se cansam; todo braço se inquieta, toda respiração se altera.
Vinte gerações de tradição do Taijiquan de Chenjiagou não são uma curiosidade folclórica. São horas incontáveis de trabalho de mestres e aprendizes empenhados na pesquisa do movimento. Com certeza houve suor e fogo, dor e beleza, surpresa e frustração em cada uma delas. Não esperamos que nossos alunos se movam todos da mesma maneira, façam tudo igual ao metre. Isso não é possível nem desejável. O que queremos é que a experiência compartilhada de treino, de um certo modo de treino, fortaleça o sentido de comunidade e continuidade, que não começa em Chen Ziqiang, nem termina na nossa escola.
Nas discussões da UNESCO sobre a definição do que seja patrimônio imaterial, vários especialistas questionaram o termo “tradição” e propuseram alternativas muito inspiradoras como: “transmissão”, “memória coletiva”, “experiência compartilhada”, “identidade comunitária” e “continuidade histórica”³. Se tornar discípulo não é uma finalidade, não serve para adquirir conteúdos exclusivos a serem replicados. O que interessa é o elo que se cria quando discípulo e mestre se comprometem com aquela experiência compartilhada, cada um do seu lugar.
A inclusão do taijiquan na lista representativa do Patrimônio Imaterial da Humanidade, ajuda a lembrar o que é mais valioso para nossa escola: construir pela experiência compartilhada da prática, uma comunidade capaz de seguir vivenciando, transmitindo e recriando um verdadeiro tesouro, que atravessa o tempo e as fronteiras.
² Instrutora da Escola Chenjiagou de Taijiquan Brasil
³ “CRITERIA FOR INSCRIPTION ON THE LISTS ESTABLISHED BY THE 2003 CONVENTION FOR THE SAFEGUARDING OF THE INTANGIBLE CULTURAL HERITAGE”, Relatório da Reunião de Especialistas da UNESCO, Dezembro de 2005.
Disponível em: https://ich.unesco.org/doc/src/00035-EN.pdf