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Começo, meio e começo: o tempo do corpo,
da terra e da arte

por Laoshi Gil Rodrigues

 

Nos ensinaram que a vida tem começo, meio e fim. Que se nasce, cresce, progride e morre. Essa é a lógica dominante — linear, acumulativa, produtivista — que organiza o tempo como uma estrada em linha reta. Mas e se esse caminho estiver nos afastando do que é verdadeiramente essencial: a escuta do corpo, o ritmo da terra, a sabedoria cíclica que sustenta a vida? E se, em vez de caminhar para frente, estivemos nos distanciando da possibilidade de voltar para casa — não a casa que tem paredes e telhados, mas a casa que é a terra que nos sustenta – voltar para o corpo que nos ancora, o tempo que nos forma, para nós mesmos em nossa inteireza, reencontrados?

É nesse ponto que emerge, como sopro de ancestralidade, a frase do quilombola e pensador Antônio Bispo dos Santos — também conhecido como Nêgo Bispo —:

“A vida é feita de começo, meio e começo.”

Uma frase que reencanta o tempo. Que nos desvia da pressa e nos reconduz ao ritmo da terra, do corpo e da sabedoria.

Essa mesma percepção ecoa, há milênios, no coração da filosofia chinesa, especialmente no Daoismo (道家). No capítulo 40 do Dao De Jing, Laozi escreve: “A volta é o movimento do Dao; a suavidade é o seu modo de agir.” O tempo, para o Dao, não se dirige a um ponto final, mas gira em espiral, alternando fases, revelando a verdade pela repetição fluida, nunca idêntica.

A fala de Nêgo Bispo não é apenas um jogo de palavras: ela expressa uma cosmopercepção. Nos quilombos, nos terreiros, nas roças, o tempo é vivido — não cronometrado. É sentido pelos ciclos da lua, pelas chuvas, pelas mãos na terra. “A terra dá, a terra quer”, diz ele. Tudo o que se retira exige devolução. Não há dádiva sem retorno. Assim também no corpo: o que se cultiva retorna. E o que se nega, adoece.

No Taijiquan (太极拳), arte chinesa que manifesta o princípio do Taiji (a suprema polaridade), cada movimento é fruto dessa mesma lógica cíclica. A prática começa com o silêncio — o Wuji (无极) —, o estado primordial de indistinção. A partir dele, surge o Taiji, o Yin e o Yang, o gesto que se alterna, se curva, se espirala. E, ao fim da sequência, retornamos ao Wuji. Começo, meio e começo.

Na repetição, não há tédio. Há refinamento. O corpo se escava e se expande. A presença se adensa. O gesto se transmuta.

“Para cultivar o corpo, primeiro aquiete o coração.”
— Clássico da Pureza e do Silêncio (清静
)

Na vida, como na arte, não colhemos no fim. Colhemos no processo — nas sensações que despertam, na escuta que se afina, no olhar que se descoloniza. Não é o domínio da técnica que transforma, mas o enraizamento de um gesto que, repetido mil vezes, revela a si mesmo. No Taijiquan, aprendemos que não há fim de linha, há retorno com consciência. Cada ciclo nos devolve ao início, mas não ao mesmo lugar: voltamos modificados, como a semente que volta à terra, mas agora carrega memória de floração.

O mesmo se dá com o pensamento de Nêgo Bispo. Ele nos convida a desfazer a lógica da chegada. Em suas palavras, o saber não está na vida escolar, na academia, mas na vida vivida — na oralidade que gesta sentidos, na terra que ensina, no corpo que resiste. Ele chama isso de contracolonialidade: não apenas uma crítica ao colonialismo, mas uma afirmação radical da vida que insiste em caminhar por outros mapas.

A linearidade nos cobra metas. O ciclo nos pede escuta. A produtividade exige resultados. O cultivo, presença.

“Se você quiser colher, primeiro aprenda a cuidar.”
— Sabedoria oral quilombola

Na arte do Taijiquan e na sabedoria dos povos da terra, viver é cultivar. E cultivar é aceitar o tempo das coisas, é honrar o processo.
Como dizia um velho mestre: “A prática não é para conquistar algo. É para se tornar alguém.”

E talvez seja isso que a frase de Nêgo Bispo nos pede: que deixemos de correr atrás de fins e aprendamos a recomeçar. Que deixemos de buscar a linha e entremos na roda. Que o gesto mais revolucionário seja voltar, e não avançar.

E quando tudo parecer ter terminado — quando o corpo cansar, o ciclo fechar, o caminho parecer exaurido — talvez seja aí que algo realmente comece.
Porque a vida, como a terra, não acaba.
Ela se transforma.
Ela espera.
Ela pede de volta.
E nos convida, uma vez mais, a começar com mais raiz e mais céu.

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